Vini Jr. e o racismo no futebol

Vascaínos e vascaínas, aqui no site do Pega na Geral costumamos publicar apenas artigos que digam respeito diretamente ao CR Vasco da Gama, sem considerações que resvalem para outros temas laterais. No entanto, vamos publicar este artigo, abaixo, escrito originalmente para uma revista política, por três boas razões:

1ª – Quem escreveu foi o Leandro Fontes, autor da obra “Vasco: o clube do povo — uma polêmica com o flamenguismo (1923–1958)”, livro indispensável para quem deseja entender a história do Gigante da Colina;

2ª – Nestes tempos em que certos picaretas tentam negar o protagonismo do Vasco na luta contra o racismo, o Leandro aproveita a deixa para por as coisas nos seus devidos lugares.

3º – O artigo está muito bem escrito. Boa leitura.

D.R. Almeida

Vini Jr. e o racismo no futebol

“O prêmio que os racistas ganharam foi a minha expulsão” (Vini Jr.)

O tema do racismo no futebol não é uma novidade. Pelo contrário, o futebol nasceu como esporte de elite e para a elite. Uma elite de refino aristocrático que não admitia trabalhadores braçais nos primeiros campeonatos, sobretudo negros.

Por Leandro Fontes*

Acontece que a prática do futebol, ainda em seus primórdios, se tornou um fenômeno moderno da juventude de todo espaço urbano e não apenas um jogo de uma classe privilegiada. Por isso, a restrição da elite não significou que o restante de frações da classe trabalhadora fosse impedido de praticar o jogo. Pelo contrário, as demais classes sociais praticavam por si o futebol. Jogavam por si. Construíram seus próprios times e clubes.

Contudo, depois de muitos embates, o futebol do ponto de vista global não é o mesmo das últimas décadas do século XIX e de todo o decorrer do século XX. Porém, o caso de Vini Jr. expõe de modo repulsivo o quanto é necessário avançarmos nas pautas antirracistas e antifascistas no “esporte bretão” e na sociedade como um todo. Portanto, o futebol não está numa redoma blindada vivendo em um mundo particular exercendo suas próprias regras e valores. Ao contrário, o futebol é um canalizador das tensões e antagonismos que de modo explícito ou velado a sociedade e as classes sociais representam.

De tal forma, não precisamos ir longe numa aferição se há ou não racismo no futebol europeu. Basta uma busca rápida no Google para concluir que esse problema não é novo e que as saídas moderadamente apresentadas até aqui não foram exitosas. Isto é, mesmo com a repercussão negativa de torcidas racistas e com protestos progressistas no mundo futebolístico, o racismo continua crescendo nos estádios. Por isso, após a partida entre Valencia 1 x 0 Real Madrid, Vini Jr. esteve absolutamente correto ao afirmar que o racismo é normal na LaLiga e agregou de modo lapidar: “sou forte e vou até o fim contra os racistas. Mesmo que longe daqui”. Não era para menos, durante a partida no Mestella, uma parte nada desprezível do estádio fez coro de “mono” (macaco). Todavia, no calor da partida e das manifestações abjetas, Vini Jr., transpirando indignação, acabou sendo expulso nos acréscimos por uma discussão com o goleiro do Valencia e uma desavença com o atacante Hugo Duro, que aplicou um mata-leão no jogador brasileiro. Entretanto, o próprio jogador não tinha mais disposição de seguir em campo diante dos coros de “macaco” que ouviu nas arquibancadas, que, aliás, são recorrentes. 

Paralelamente, o presidente da LaLiga, Javier Tebas, foi às redes sociais atacar Vini Jr., dizendo que o jogador não compareceu a duas reuniões para tratar do assunto e que deveria se informar antes de criticar a liga. Ou seja, a velha fórmula de inverter a responsabilidade do problema, de culpabilizar a vítima. Mas, Vini Jr. respondeu à altura, registrando que mais uma vez o presidente da LaLiga aparece nas redes para atacá-lo e não para criticar os atos racistas.

A reação em defesa de Vini Jr. foi imediata e transbordou não só nos meios do futebol, isto é, jogadores de todos os cantos do mundo, clubes, federações, o governo brasileiro e figuras públicas da política, das artes e da mídia se somaram à onda de solidariedade. No entanto, embora importantes, as manifestações imediatas não são suficientes para liquidar com o racismo no futebol na nefasta LaLiga. Logo, em tempos de ascensão das ideologias reacionárias e neofacistas, é preciso construir ações mais contundentes de enfrentamento e posições intransigentes frente às manifestações racistas no futebol.  

Nesse ponto o futebol brasileiro pode contribuir com sua verdadeira história, recheada de contradições, enfretamentos, dissídios, rupturas, denúncias de fraudes, corrupção, preconceito, elitismo, mas, com algumas páginas pouco estudadas da luta política contra o racismo. A verdade é que o racismo foi praticamente institucionalizado no futebol no Brasil durante a Primeira República e seguiu existindo, de modo velado, na Era Vargas e nos demais governos seguintes.

Quer dizer, o mito da democracia racial, por sua natureza errônea, não foi o antídoto da grande febre racista do futebol brasileiro. Muitas são as evidências que reforçam as palavras do treinador Roger Machado em 2019: “No Brasil, existe o preconceito estrutural”. Tal afirmativa pode ser igualmente interpretada como racismo estrutural, conceito trabalhado com notável competência pelo filósofo de nosso tempo Silvio Almeida. Isto é: os negros, mesmo sendo maioria no Brasil, não conseguem alcançar — na mesma medida que pessoas brancas — os postos de liderança e de destaque na sociedade. Isso significa, na janela do futebol, que os negros dificilmente chegam aos postos de dirigentes de clubes e de federações, de treinadores e, até mesmo, de associados dos grandes clubes do país.

Esse é um dos dramas que posiciona, quase que sempre, o negro no futebol no lugar de jogadores e de torcedores. Porém, há um episódio que precisa ser registrado e analisado como um exemplo de contraponto aos padrões elitistas e racistas de clubes, torcidas, ligas e federações. Estou falando da Resposta Histórica do Club de Regatas Vasco da Gama direcionada a AMEA, uma espécie de “LaLiga” (racista e elitista) do futebol do Rio de Janeiro que em 1924 só aceitaria a filiação do Vasco se o clube eliminasse 12 jogadores do seu plantel, evidentemente todos negros e operários.

O Vasco por sua vez decidiu se enfrentar com a AMEA comandada pelos clubes da Zona Sul e dessa forma respondeu a Arnaldo Guinle (dirigente máximo da AMEA e do Fluminense FC):

Estamos certos de que V.Exa. será o primeiro a reconhecer que seria um ato pouco digno da nossa parte sacrificar ao desejo de filiar-se à AMEA alguns dos que lutaram para que tivéssemos entre outras vitórias a do campeonato de futebol da cidade do Rio de Janeiro de 1923. São esses doze jogadores jovens, quase todos brasileiros, no começo de sua carreira e o ato público que os pode macular nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu, nem sob o pavilhão que eles, com tanta galhardia, cobriram de glórias. Nestes termos, sentimos ter que comunicar a V.Exa. que desistimos de fazer parte da AMEA. Queira V.Exa. aceitar os protestos de consideração e estima de quem tem a honra de se subscrever, de V. Ex.ª. At. Vnr. Obrigado. (assinado) Dr. José Augusto Prestes — Presidente” 

Em resposta à carta de Prestes, Arnaldo Guinle formalizou:

“(…) alimentamos a esperança de que, para o futuro, elle fizesse todos os esforços para construir equipes genuinamente portuguesas, porquanto ao nosso ver não havia em nosso meio outra colônia capaz de apresentar melhores elementos que a portuguesa para uma demonstração esportiva das verdadeiras qualidades desta nobre raça secular (…)”.

Ou seja, o Vasco exclusivo dos portugueses, sem os negros, seria bem acomodado e respeitado. Ora, qual o significado disto? Racismo!

Porém, o Vasco, mesmo não tendo sido o pioneiro em escalar jogadores negros no futebol brasileiro, optou de modo original pelo enfrentamento e pela defesa intransigente dos seus jogadores. O resultado desse choque entre antagonistas foi a quebra de paradigma que nos anos seguintes abriu as portas não só para o negro nos grandes clubes, mas, sobretudo, influenciou no nível consciência dos atores envolvidos no futebol: jogadores, torcedores, associados de clubes e cartolas.

Não quero de modo algum, nas linhas acima, fazer propaganda clubística. Esse não é o objetivo do presente artigo. Entretanto, enquanto escritor e pesquisador de futebol, não poderia ocultar essa página de combate ao racismo que se tornou célebre na história do futebol brasileiro. De tal forma, não é por nada que, entre tantos, Leônidas da Silva e Friedenreich saudaram o Vasco como o clube aliado aos negros e ao profissionalismo, que Lázaro Ramos irá dirigir um longa-metragem sobre os Camisas Negras e a Resposta Histórica e, que, Luiz Antônio Simas, afirmou no SportTV que a trajetória democrática do CR Vasco da Gama deveria ser ensinada nas escolas.

Portanto, com os efeitos desta lição e sob os holofotes da indignação de Vini Jr. tiro à seguinte conclusão: o racismo não será derrotado no futebol europeu sem um enfrentamento contundente. Quer dizer, não basta o protesto e a solidariedade aos jogadores vítimas de discriminação racial. É preciso ir além. Mas, não me refiro a algo propagandístico, como: “a tarefa número 1 é acabar com o capitalismo para acabar com o racismo”. Mesmo estando convencido que o sistema capitalista é racista em sua gênese, creio que não seja por essa orientação no vazio que as coisas podem ser resolvidas no tempo e no espaço. Por isso, é necessário compreender que a luta é por dentro e por fora das estruturas do futebol, utilizando todos os meios possíveis para a transformação dessa bandeira em maioria social.

Contudo, gestos e ações são necessários, uma vez que, no caso de Vini Jr., há uma leniência escandalosa da LaLiga, dos clubes, da imprensa e do poder público. Portanto, é a hora do Real Madrid se provar enquanto instituição, tirar a etiqueta de clube franquista e encabeçar um chamado contra o racismo sofrido por seu jogador e, utilizando todo seu prestígio e alcance social, ir às últimas consequências na batalha contra a funesta LaLiga e o racismo estrutural entranhado nos clubes, nas torcidas e no Estado espanhol. Certamente o clube madrilenho poderá ganhar muita simpatia além-mar e adeptos nesse movimento e a imagem de Vini Jr. ganhará força internacional contra o racismo.

A pergunta final é: há possibilidade dessa combinação triunfar? A resposta é sim, por uma razão simples, o Real Madrid sobrevive sem a LaLiga. Mas, a LaLiga não sobrevive sem o Real Madrid. Porém, é preciso vontade política, coragem, coerência, tenacidade, unidade com os movimentos que lutam pelos direitos civis e um pingo de vergonha na cara para assumir tamanha posição. Do contrário, mesmo que justa, a batalha será mais difícil e longa. Contudo, de nossa parte, fica o recado: força Vini Jr., racismo e fascismo nunca mais!

* Sócio-proprietário do Vasco e autor da obra Vasco: o Clube do Povo – uma Polêmica com o flamenguismo (1923-1958)

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