Um amigo faz um relato banal, mas carregado de sentimento humano, que tento reproduzir com o pouco talento que a natureza me legou.
Por D. R. Almeida*
Era uma madrugada insone, quando surgiu a voz de um amor perdido, reabrindo velhas feridas.
Não foi propriamente uma voz eis que não passava de uma mensagem de texto enviada para o celular.
Tampouco era uma mensagem romântica. A ex-amante dizia apenas, para o ex-amado, que não concordava que continuassem se tratando com tanta reserva, como se desconhecidos fossem, pois este era o tom que o ex-amado adotara para com ela desde o fim do relacionamento.
O conteúdo da mensagem enviada pela ex-amante trazia apenas esta reivindicação, mas para quem ama ou amou muito, as letras ganhavam um tom musical, como o som de tempos felizes. Além disso, o texto vinha cheio de pontos de reticências. E em cada uma destas interrupções na melodia frásica meu pobre amigo lia uma declaração de amor e arrependimento, provavelmente só existentes em sua mente confusa pela hora já avançada e pelo coração disparado.
Uma mistura de esperança e melancolia, temperada por um intermitente sentimento de mágoa, transformou aquela madrugada em uma montanha russa emocional.
Por que – perguntava o meu amigo – justo quando as chamas deixam de queimar e a fogueira está quase se transformando em cinzas, surge este vento traiçoeiro para reavivar o fogo?
E continuou: “O que busca ela com isso? Saber que ainda pode me fazer sofrer? Ou no fundo quer ouvir minha confissão de que tudo ao me redor é ela? Que depois de todo este tempo seu nome não me sai da boca e tudo que faço e os lugares que freqüento tem o gosto de sua presença?”, desabafou.
O sentimento humano é como um cavalo selvagem que mesmo depois de domesticado de vez em quando tenta derrubar o cavaleiro da sela.
Meu amigo, que preza muito por seu autocontrole, percebe isso e tenta reassumir o comando dando um puxão na rédea e, sorrindo, faz uma citação: “saudade, como dizia Camões, é a grande dor das coisas que passaram”.
Digo a ele que Camões tinha razão, mas que esta frase não basta para determinar o que é a saudade, nem Camões tinha a pretensão de definir um sentimento tão complexo em tão poucas palavras.
A definição de Camões é provavelmente a mais bela, mas é apenas uma entra tantas possíveis. O tempo passa, mas o que acontece em nossas vidas deixa marcas e nos modifica. Quando se trata de amor então, mesmo de um amor que já se foi, a coisa é pior.
Para não ficar atrás em termos de citação, e aproveitando a analogia da fogueira que ele usou antes, lembro que La Rochefoucauld tinha a seguinte máxima: “a ausência diminui as paixões medíocres e aumenta as grandes, como o vento apaga as velas e atiça as fogueiras”. Completei então afirmando que “esta frase de La Rochefoucauld se aplica a você e a ela”.
Meu amigo, que é um tanto ranzinza, depois de um tempo calado, replicou simplesmente que La Rochefoucauld era um moralista barato.
A prosa mudou de rumo. Passeamos por diversos assuntos. Ao nos despedirmos voltei à carga e me permiti um pequeno discurso. Declarei que a mulher é, e sempre será, um mistério para nós, pobres homens, incapazes de entender totalmente as sutilezas da alma feminina. De qualquer maneira, uma coisa ou outra podemos supor. O fato de a moça ter mandado a mensagem de madrugada diz muito e só um sujeito muito cabeça dura não perceberia isso.
O cabeça dura em questão replicou que concordava sobre as sutilezas da alma feminina, e disse mais: “Por exemplo, em um relacionamento às vezes acontece de um dos dois atingir um estado que mistura um ódio sincero com um amor fingido, para usar uma expressão de Noel. Quando é a mulher a ter este sentimento ela sabe lidar muito melhor com esta dubiedade. Não que ela não sofra, mas na maioria dos casos é ela quem manobra a situação seja para prolongar o relacionamento, seja para acabar com ele, sempre tendo em vista o melhor momento para ela. No fundo, no fundo, a mulher pode chorar mais, pode fazer mais estardalhaço, etc, mas nestes assuntos toma decisões de modo muito mais calculado do que os homens. A malícia de toda mulher, de que fala Noel em Pra que Mentir, é algo de fascinante e belo, mas tem também muitas vezes um aspecto cruel e frio”.
Ele falou tudo isso com a expressão de uma ironia amarga, como relativizando seu próprio discurso.
Enfim nos separamos e um pouco da amargura dele ficou em mim. Fica claro que ele acha que a moça tenta manobrá-lo, e deixá-lo como uma espécie de “reserva estratégica”, como naquela letra de Humberto Teixeira:
“Kalu, Kalu / Tira o verde desses óios di riba d’eu / Kalu, Kalu / Não me tente se você já me esqueceu / Kalu, Kalu / Esse oiá despois do que assucedeu / Com franqueza só não tendo coração / Fazê tar judiação / Você tá mangando di eu”
Não descarto esta possibilidade, pois todo ser humano tem um pouco de sadismo recôndito na alma e goza de um secreto e talvez inconsciente prazer em saber que alguém sofre por sua causa, fora que é sempre confortável ter alguém disponível em caso de carência crônica.
Enfim, pode ser que realmente La Rochefoucauld tenha sido um moralista barato. O meu amigo já leu La Rochefoucauld, eu não. Minha citação foi de segunda mão, de um livro de Machado de Assis, não lembro qual. Mas cá entre nós, fico com a impressão de que neste caso específico, entre Noel, Humberto Teixeira e La Rochefoucauld, é o velho conde francês quem tem razão.
*D. R. Almeida é escritor e Filósofo