Nesta quinta-feira (2) o perfil Futebol no Rio em Fotos divulgou, no Twitter, uma charge de Otélo Caçador de 1959 que retrata de modo estigmatizado o Vasco como “a representação do colonizador do Império Português” e o Flamengo como “a representação dos povos originários do Brasil”.
Por Leandro Fontes*
É de conhecimento público que o jornalista e cartunista Otélo Caçador, que faleceu em 2006 aos 80 anos, era um flamenguista empedernido. Manteve entre 1953 a 1986 a coluna “Penalty” no jornal O Globo e, depois, de 1999 a 2002 seu trabalho continuou no jornal Extra. A essência da coluna de Otélo, em meio século de holofotes nos periódicos do igualmente rubro-negro Roberto Marinho, foi à exaltação exacerbada e distorcida do clube da Gávea. Mas, até esse ponto, não há nada de “anormal” se tratando de opiniões massificadas nos veículos de comunicação do Grupo Globo. Todavia, a presente charge, produzida na janela dos sessenta anos de Vasco e Flamengo, desnuda a estratégia torpe dos representantes do flamenguismo na imprensa. Conforme brilhantemente enfatizou Luis Manuel Fernandes no prefácio de Vasco: o clube do povo – uma polêmica com o flamenguismo (1923-1958):
“Em tempos de afirmação da nossa identidade nacional, o Flamengo se redefinia como o representante do Brasil na polarização com um Vasco que representaria a dominação colonial. Para além de midiática, era uma operação ideológica no sentido mais estrito da palavra: o da inversão da realidade. E que continuou operando, de forma ainda mais forte, com o surgimento e massificação da televisão nos anos 1950 e 1960” (2020. p. 13).
De tal maneira, classificar o Vasco como clube dos colonizadores das capitanias hereditárias é intolerável. O Vasco foi fundado por imigrantes portugueses que desembarcaram no Brasil fugindo da fome e na busca de uma vida nova na América. Mas, não só. Conforme escrevi no artigo, “O Vasco sob o arco-íris”, para a Revista Movimento:
“Nunca é demais ressaltar que o Vasco elegeu e reelegeu, dezesseis anos após a formalização da abolição da escravatura, Candido José de Araújo (1904-1906), o primeiro presidente negro dos grandes clubes no país. O clube, em seus primeiros anos de construção, abarcava no seu quadro social a juventude comerciária, operários das serralherias a vapor, empregados e empregadores do comércio de secos e molhados. Assim sendo, o Vasco misturou imigrantes radicados no Rio de Janeiro, comerciantes, assalariados e negros, sob a bandeira da comunhão fraterna e indivisível entre brasileiros e portugueses”.
O Vasco nasceu na Saúde de frente para o mar e seus idealizadores escolheram batizar nossa agremiação, até então dedicada somente ao remo, com o nome do Almirante português que realizou feitos que mudaram a história da navegação mundial. Assim, em meio à divulgação da imprensa da época da comemoração do IV centenário da descoberta do caminho marítimo para a Índia, os 62 fundadores (como ficou registrado formalmente) decidiram: Club de Regatas Vasco da Gama. Ou seja, o nome eleito foi Vasco da Gama e o pavilhão adotado foi preto e branco com a Cruz de Cristo encarnada. Quer dizer, não foi Rei D. Manuel I com o pavilhão azul turquesa e branco (cores da bandeira da era imperial de Portugal). Além disso, é importante que se diga, mesmo os Bragança no Brasil não tiveram relação afetiva com o Vasco. Pelo contrário, boa parte da família imperial se declarava Fluminense.
Portanto, a narrativa expressa na charge caluniosa de Otélo deve ser veementemente rechaçada. No entanto, a falsificação histórica do cartunista oculta, ao mesmo tempo, o verdadeiro enquadramento de seu clube. Ora, se o Flamengo foi um clube da elite ao longo da República Velha, e foi, isso significa que essa elite se formou nos braços do Império dos Bragança. Ou seja, quem tinha relação social com os herdeiros da colonização era justamente a elite e não o português que veio para o Brasil no período da imigração de massas, entre o final do século 19 e início do século 20, para se tornar mão de obra assalariada. Não é à toa que a esmagadora maioria das casas portuguesas homenageia, não o Brasil colônia, mas, sim, a essência cultural, o folclore, a culinária e tradição social do imigrante trabalhador e empreendedor. Um conjunto de costumes e valores que foram igualmente incorporados na cultura popular dos brasileiros.
Logo, como justificar a constrangedora charge de 1959 de Otélo Caçador?
Uma vez que o clube falsamente apresentado como “representante da pura brasilidade” era sabidamente segregador em seu quadro social ainda nos anos 50, só aceitou jogadores negros a partir de 1933, votou pela exclusão do Vasco em 1924 embasado na “acusação” de que o Vasco tinha jogadores de “origem social duvidosa” e manteve sua posição racista e elitista em 1925, como justificar?
Talvez Otélo Caçador, sem querer, em sua calúnia, acertou somente na proporção numérica de vascaínos em relação ao Flamengo. Na charge aparecem 5 personagens com a camisa do Vasco e apenas um com a camisa do Flamengo. Isto porque, comprovadamente, naquele recorte temporal (1959), o Vasco tinha a maior torcida e hegemonizava todos os confrontos diretos, sob qualquer critério, com o rival. Contudo, a estória (com E) narrada foi outra, como eternizou Hebert de Souza (o Betinho), “existe uma forma de se fazer História; e outra de, de se contar a História”, essa é diferença fundamental entre Vasco e Flamengo.
* Sócio-proprietário do Vasco e autor da obra Vasco: o Clube do Povo – uma Polêmica com o flamenguismo (1923-1958)
Minha tia e meu tio moram no Selva de Pedra no Leblon, da janela deles se vê o Clube Rival ao qual ele é sócio e rubro-negro doente, sou vascaíno mas já tive a oportunidade de entrar naquela sede umas 3x. Em todas as ocasiões o que vi foi um clube extremamente elitizado, parecia que eu estava em Estocolmo, Helsinque…os únicos negros que eu vi por lá trabalhavam na limpeza.
Em São Januário há uma diferença gritante em relação a Gávea, você de fato vê nos associados e frequentadores a síntese do povo brasileiro, o mesmo vale para a Sede do Calabouço, volta e meia eu via o pessoal fazendo um churrasquinho ali, tudo gente como a gente. Não homens e mulheres com biquinho e olhar blasé. Isso é apenas um retrato bem contemporâneo do que é e sempre foi o Flamengo, por fora é uma coisa, por dentro, lá nas entranhas é algo completamente diferente. Clube elitizado, higienista e que construiu sua popularidade na base dos factóides.
Leandro, o seu trabalho é incrível…eu pergunto, algum rival já apresentou algum contraponto em relação ao seu livro? Eu acredito que eles não vão nem tentar, é praticamente impossível derrubarmos fatos!!!
Belo relato Daniel. E sobre sua pergunta, não. Ninguém até o momento publicou polemizando com Vasco: o clube do povo.
Excelente!
É isso, camarada.
Uma aula sobre o tema em voga.
M A R A V I L H A !!!!!
Meu avô paterno Albertino Moreira Dias, português natural do Porto, veio para o Brasil para trabalhar e aqui casou com uma brasileira. Formou família e tornou-se um empresário no ramo de tecidos. Era uma pessoa apaixonada por esportes e foi diretor e jogador do Luzitânia. Quando da fusão com o Vasco da Gama, tornou-se o PRIMEIRO diretor de futebol. Foi quem desenvolveu a idéia de formar um time de atletas vencedores, independentemente de raça, côr, situação social ou qualquer outro rótulo. O Vasco da Gama foi Campeão no primeiro ano em que disputou o Campeonato…
Daí pra frente vocês todos já sabem a História.
Porém a ” mídia” corrupta e tendenciosa esconde e tem inveja dessa IMENSA TORCIDA BEM FELIZ!
O Vasco da Gama é uma FAMÍLIA!!
É como falava meu avô:
“O Vasco é um clube formado por portugueses para seus filhos brasileiros !!!!
Muito bom. Nao podemos deixar isso passar
Belo artigo!
Resgate da história e de defesa da verdade!
Poucas vezes vi uma resposta tão bem escrita e fundamentada. Parabéns, Leandro!