A miséria do Vasco e do jornalismo esportivo

"No Vasco o deserto de jornalismo é ainda maior. Os profissionais que cobrem o Vasco, não conheço exceções, não fazem jornalismo, mas assessoria de imprensa".

A torcida do Vasco está emocionante. Falam tanto em “instituições” no Brasil, mas quase sempre se referindo a aparatos do Estado que dizem pouco à maioria, até porque a maior parte está estruturada para a opressão e o represamento de demandas sociais.

Por Mauro Abdon Gabriel*

Os clubes de futebol estão dentre as poucas instituições que geraram afetos e significados, efetivo enraizamento, e hoje, acredito, nenhum clube representa melhor isso que o Vasco, sem desmerecer o sentimento gerado por outros clubes grandes, médios ou pequenos. A paixão não se mede pelo tamanho da torcida, ao menos não deveria.

E isso não é de hoje. Nem falo da linda história do Vasco, não preciso ir até a Resposta Histórica (ainda que ela seja essencial), estou me referindo a esse longo momento de fracassos esportivas que vivemos. Mais do que qualquer outro clube, talvez só encontrando paralelo na torcida corintiana nos anos de seca (1954-1977), o Vasco tem na torcida seu constante e único suporte nesses anos de sofrimento esportivo.

Desde antes de 2008, ano do primeiro rebaixamento (com um pequeno período, entre 2011 e 2012, em que disputou títulos), a história do Vasco tem sido de decepções esportivas e políticas, mas também de intenso engajamento da torcida, com breves recuos, pela consumação das decepções; para logo depois ressurgir por qualquer motivo: um bom jogo ocasional, os poucos títulos, um atacante carismático decadente e fora de forma, um jovem promissor incensado antes do tempo, um zagueiro boquirroto que falhava seguidamente, mas “botava pra quebrar contra o flamengo”, uma quase fuga heroica de um rebaixamento certo, o vascaíno se agarrou ao que pôde nesses anos duros.

A torcida fez mais do que acreditar em miragens, ajudou a construir o CT, financiou a estátua de Roberto Dinamite, tornou o Vasco o clube com maior número de sócios torcedores no Brasil, antes de vir novo rebaixamento, nova decepção.

Em 2021, vascaínos do Brasil todo deram provas incontestes de paixão, tentando empurrar o time para a primeira divisão, não conseguimos, nem chegamos perto, torcida não joga, infelizmente. Neste ano de 2022, depois de um começo decepcionante, bastaram algumas vitórias para acender novamente a torcida, desta vez amparada pelas esperanças de um “futuro melhor”, com a SAF.

Contra a corrente, contudo, insisto em trazer algumas reflexões e perguntas sobre a SAF. Em primeiro lugar, necessário reconhecer que a política associativa do Vasco levou o clube a essa situação. Os dirigentes vascaínos fracassaram, os beneméritos fracassaram, os grupos políticos que atuam no clube fracassaram, inclusive os que agora posam de salvadores e que na eleição (que não ganharam) sequer cogitaram colocar a venda do Vasco em suas propostas de campanha.

Não sou um agente “neutro”, tenho minha opinião sobre a política vascaína, há poucos méritos e muitas culpas a serem distribuídas, mas o que assistimos desde 2020 é espantoso sob qualquer parâmetro histórico. O Vasco conseguiu produzir o paradoxo de ter uma oposição que é situação. Contudo, isso não é novidade, Eurico já tinha feito isso quando ganhou a eleição quase por unanimidade em 2000 e por isso deu-se ao luxo de lançar uma falsa chapa de oposição, que ficou em segundo, alijando do Conselho a verdadeira oposição, que era, sim, bem minoritária, mas aguerrida.

Sem oposição, sem fiscalização, ali começou a derrocada institucional do Vasco, mas depois tivemos muitos capítulos e grande contribuição de setores da oposição a Eurico. Com o tempo, alguns se mostraram muito piores que o odiado/amado dirigente, mas isso é coisa para um livro que outros escreveriam melhor do que eu, mas que talvez não interesse nem o torcedor apaixonado. O Clube virou uma novela de baixíssima qualidade, cheia de canastrões e pouquíssimos atores dignos, alguns destes, inclusive, imerecidamente alvos da torcida das “redes sociais”.

Sou um fervoroso adepto da política, do debate, da divergência, em qualquer espaço público, mas com regras definidas e aceitas pelas partes que disputam. O fracasso institucional do Vasco não foi por causa da política, mas pela falta dela, quando quebraram regras que deveriam ser aceitas por todos, quando os conflitos no Clube deixaram de ser resolvidos internamente e foram transferidos para o Judiciário. Fazendo uma analogia cabível, o mesmo que ocorreu no Brasil em 2016 no golpe parlamentar contra Dilma. Quando as regras do jogo são ignoradas, tudo é permitido.

O fato inconteste, que demonstra o fracasso institucional do Vasco, é que uma diretoria impopular, a mais incompetente esportivamente da história, está para vender o futebol do Clube com o apoio de ampla maioria da torcida, que parece ter dividido a mente em duas partes incomunicáveis (uma fuga desesperada por esperança?): SAF de um lado, diretoria de outra, como se uma estivesse dissociada da outra. Mais um paradoxo na história desse peculiar e apaixonante clube.

A esperança veio na forma da Lei nº 14.193/2021, a Lei da SAF. Mas o que diabos é a SAF? Vejam, não pergunto em termos legais, isso quem lê a Lei entende os aspectos mais importantes. Estou perguntando: qual o contexto dessa Lei nesse governo e nessa legislatura, que futebol virá dessa Lei, que tipo de lobby estava por trás da aprovação rápida e sem questionamentos, que tipo de rearranjo das estruturas econômicas que dominam (ou pretendem dominar) o futebol estamos assistindo? E na Europa, está tudo certo com um modelo que levou a uma concentração nunca vista de muitos craques em poucos times, tornando o futebol atual o menos competitivo em toda sua história? Esse modelo está sendo transplantado para cá? Concordamos com ele?

Mais especificamente, em relação ao Vasco, quem é a 777 Partners, quem são seus verdadeiros donos, o que pretendem no futebol, além de transformar o Vasco em uma dentre várias franquias que são ou serão donos mundo afora, como Genoa, da Itália, e Standard Liège, da Bélgica? Qual a ligação da 777 Partners com inúmeros sites de apostas esportivas com o mesmo número nos nomes (777) que proliferaram na internet nesses últimos anos, paralelos temporalmente à aprovação da Lei nº 14.193/2021?

Não acredito que essa diretoria do Vasco vai esclarecer alguma coisa, até agora não deu quaisquer detalhes, apenas jogou informações e desinformações picadas pelos muitos porta-vozes na mídia, todos aliados dessa suposta modernização do futebol.

Explorou o desespero e a esperança da torcida, insiste nas absurdas “cláusulas confidenciais”, que não fazem sentido legal ou moral para uma instituição que é privada apenas por classificação jurídica anacrônica, mas que é pública por excelência. Todos os detalhes deveriam ser públicos e acessíveis à torcida, não estamos falando de segredos industriais, mas do futuro (ou não futuro) de uma INSTITUIÇÃO com milhões de torcedores.

As perguntas que fiz acima, e muitas outras, deveriam ser respondidas por um jornalismo investigativo que, infelizmente, está morto e enterrado, especialmente no meio esportivo. Tanto quanto o Vasco fracassou institucionalmente. Sim, eu sei que são coisas completamente distintas, não estou misturando banana com meteoro, apenas constatando que são realidades distintas que convergem nesse específico momento do Clube, para infelicidade da Instituição.

Nos jornais vemos apenas o oba-oba, análises de supostos especialistas que olham, no máximo, a superfície, deixando de fora o que realmente interessa. Alguns até palpitam corretamente que a aceitação generalizada da torcida à proposta da SAF decorre fundamentalmente da crise política grave que o clube vive há anos, mas… param aí. O jornalismo virou isso, ou propaganda escancarada da SAF ou reflexões sobre o óbvio ululante com ar de profundidade que deixariam o Conselheiro Acácio com inveja.

Mas ninguém vai a fundo para saber quem estava por trás da Lei da SAF, qual a ligação com grupos econômicos internacionais, inclusive aqueles ligados a apostas esportivas, o que pretendem do futebol. E essa deveria ser uma demanda do jornalismo, não de um vascaíno que escreve um texto que poucos irão ler. Importa para o futebol, como fenômeno cultural e político. Essas mudanças vão impactar o futebol, não apenas clubes isolados, mais ou menos populares.

Alguns clubes que estivessem na mesma situação ainda teriam a sorte de contar com jornalistas esportivos conhecidos, que são seus torcedores e honram a profissão, para ao menos investigar. Juca Kfouri, por exemplo, um dos mais renomados jornalistas do País (e não delimitado à área esportiva), foi um agudo crítico da patacoada da MSI no Corinthians, em 2004/2005, e no final provou estar certo, mesmo enfrentando duras críticas à época.

Mas o futebol sempre teve o “lado torcedor” que dificulta o exercício do jornalismo, os que atuam nessa área, em regra, evitam as polêmicas internas nos clubes e federações, viram apenas comentaristas do jogo no campo e pouco falam da política no e do futebol. Tivemos algumas poucas exceções na história (o pequeno panteão João Saldanha do jornalismo esportivo), mas hoje nem isso, vivemos essa mudança importante e grave e ninguém sequer faz as perguntas que deveriam ser feitas, que dirá buscar as respostas.

No Vasco, concluindo, o deserto de jornalismo é ainda maior. Os profissionais que cobrem o Vasco, não conheço exceções, não fazem jornalismo, mas assessoria de imprensa. De fora desse pequeno clube de assessores, nada vem, e assim La Nave (da SAF) Va, sem questionamentos.

O descalabro que ocorreu no Clube na eleição de 2020 deveria ter sido motivo de reportagens, bastava ler alguns documentos, não se tratava de “tomar posição”, mas de fazer jornalismo. E tudo passou batido, os bandidos foram tratados como mocinhos e agora vão vender o Vasco.

Mas nunca é tarde para ter esperança, sou vascaíno, ainda está em tempo de se fazer jornalismo. Não é demais desejar que esse passo sem retorno, se for realmente tomado, o seja com os vascaínos sabendo as consequências. Sou contra a SAF, acredito sempre que a política pode tirar o clube do buraco, não precisamos de financistas aventureiros (ou coisa pior) que não sabemos de onde vieram, mas se essa for a vontade da maioria dos vascaínos, a partir de informações reais e fidedignas, estarei junto. Sempre melhor errar junto do que acertar (quase) sozinho.

* Advogado, sócio estatutário do Club de Regatas Vasco da Gama

3 comentários

  1. Mega Vascainidade -parabéns pela brilhante reflexão. Esse chamado à mídia para refletir é sensacional. Contudo, parecem ter ouvidos moucos ou são torcedores de outros adversários ou um combo disso tudo.

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