“Se eu demorar uns meses / Convém às vezes, você sofrer / Mas depois de um ano, eu não vindo / Ponha a roupa de domingo / E pode me esquecer” – Versos de Julinho da Adelaide em “Acorda Amor”
Durante a ditadura, Chico Buarque enfrentava um problema: qualquer música assinada por ele era vetada pela censura de imediato. Daí, para driblar isso, ele criou um personagem que passaria a assinar as composições: Julinho da Adelaide (nome completo: Júlio Cesar Botelho de Oliveira), que nasceu em 1974 e, fenômeno precoce, no mesmo ano passou a compor canções que eram liberadas sem problema, pois a ditadura ainda não sabia do ardil. Três músicas foram feitas por Julinho da Adelaide (embora ele alegasse ter feito também a letra de “Juca”) e fizeram muito sucesso na época: Acorda Amor, Jorge Maravilha e O Milagre.
Julinho ficou famoso. Chegou a dar uma entrevista ao jornal Última Hora (veja, ao final deste texto, o delicioso depoimento escrito em 1998 pelo jornalista Mário Prata sobre o episódio). Nessa entrevista, Julinho contou, entre outras coisas, de onde veio seu nome. “Eu me chamo Julinho da Adelaide porque todo mundo só me chama assim lá no morro. Acontece que a minha mãe é mais famosa do que eu lá no Rio. Minha mãe é célebre (…) O feijão branco dela é conhecido lá no morro. Então todo mundo perguntava assim: qual Julinho? O Julinho da Adelaide”.
Não existe fotografia de Julinho da Adelaide, pois ele tinha duas feias cicatrizes no rosto que o envergonhavam.
Segundo Chico Buarque, intérprete das músicas do compositor e seu amigo, Julinho era “um rapaz muito sofrido”.
Quando Julinho da Adelaide morreu em 1975 (“tragicamente assassinado por golpes de tesoura, por vilões de identidade incerta e não sabida, que agiam na calada da noite”) tiraram uma foto do Chico, inconsolável, perto do túmulo, apesar do Julinho, segundo Mário Prata, ter dito na entrevista que estava “puto” com seu intérprete: “O Chico Buarque quer aparecer às minhas custas”.
Julinho da Adelaide viveu pouco, fez história e mostrou que a arte sempre encontra um jeito de driblar os inimigos da cultura e amigos do obscurantismo.
Wevergton Brito Lima, jornalista
Julinho de Adelaide, 24 anos depois
Depoimento de Mário Prata
Eu me lembro até da cara do Samuel Wainer quando eu disse que estava pensando em entrevistar o Julinho da Adelaide para o jornal dele. Ia ser um furo. Julinho da Adelaide, até então, não havia dado nenhuma entrevista. Poucas pessoas tinham acesso a ele. Nenhuma foto. Pouco se sabia de Adelaide. Setembro de 74. A coisa tava preta.
– Ele topa?
– Quem, o Julinho?
– Não, o Chico.
O Chico já havia topado e marcado para aquela noite na casa dos pais dele, na rua Buri. Demorou muitos uísques e alguns tapas para começar. Quando eu achava que estava tudo pronto o Chico disse que ia dar uma deitadinha. Subiu. Voltou uma hora depois.
Lá em cima, na cama de solteiro que tinha sido dele, criou o que restava do personagem.
Quando desceu, não era mais o Chico. Era o Julinho. A mãe dele não era mais a dona Maria Amélia que balançava o gelo no copo de uísque. Adelaide era mais de balançar os quadris.
Julinho, ao contrário do Chico, não era tímido. Mas, como o criador, a criatura também bebia e fumava. Falava pelos cotovelos. Era metido a entender de tudo. Falou até de meningite nessa sua única entrevista a um jornalista brasileiro. Sim, diz a lenda que Julinho, depois, já no ostracismo, teria dado um depoimento ao brasilianista de Berkely, Matthew Shirts. Mas nunca ninguém teve acesso a esse material. Há também boatos que a Rádio Club de Uchôa, interior de São Paulo, teria uma gravação inédita. Adelaide, pouco antes de morrer, ainda criando palavras cruzadas para o Jornal do Brasil, afirmava que o único depoimento gravado do filho havia sido este, em setembro de 1974, na rua Buri, para o jornal Última Hora.
Como sempre, a casa estava cheia. De livros, de ideias, de amigos. Além do professor Sérgio Buarque de Hollanda e dona Maria Amélia, me lembro da Cristina (irmã do Julinho, digo, Chico) e do Homerinho, da Miucha e do capitão Melchiades, então no Jornal da Tarde. Tinha mais irmãos (do Chico). Tenho quase certeza que o Álvaro e o Sergito (meu companheiro de faculdade de Economia) também estavam.
Quem já ouviu a fita percebeu que o nível etílico foi subindo pergunta a resposta. O pai Sérgio, compenetrado e cordial, andava em volta da mesa folheando uma enorme enciclopédia. De repente, ele a coloca na minha frente, aberta. Era em alemão e tinha a foto de uma negra. Para não interromper a gravação, foi lacônico, apontando com o dedo:
– Adelaide.
Essa foto, de uma desconhecida africana, depois de alguns dias, estaria estampada na Última Hora com a legenda: arquivo SBH. Julinho não se deixaria fotografar. Tinha uma enorme e deselegante cicatriz muito mal explicada no rosto.
Naquelas duas horas e pouco que durou a entrevista e o porre, Chico inventava, a cada pergunta, na hora, facetas, passado e presente do Julinho. As informações jorravam. Foi ali que surgiu o irmão dele, o Leonel (nome do meu irmão), foi ali que descobrimos que a Adelaide tinha dado até para o Niemeyer, foi ali que descobrimos que o Julinho estava puto com o Chico:
– O Chico Buarque quer aparecer às minhas custas.
Para mim, o que ficou, depois de quase 25 anos, foi o privilégio de ver o Chico em um total e super empolgado momento de criação. Até então, o Julinho era apenas um pseudônimo pra driblar a censura. Ali, naquela sala, criou vida. Baixou o santo mesmo. Não tínhamos nem trinta anos, a idade confessa, na época, do Julinho.
Hoje, se vivo fosse, Julinho teria 55 anos. Infelizmente morreu. Vítima da ditadura que o criou.
Há quem diga, porém que, como James Dean e Marilyn Monroe, Julinho estaria vivo, morando em Batatais, e teria sido ele o autor do último sucesso do Chico, A foto da capa. Sei não, o estilo é mesmo o do Julinho. O conteúdo então, nem se fala.
Que história genial, essa do Julinho da Adelaide.
Infelizmente estamos vivendo tempos em que os últimos remanescentes da ditadura ressurgiram e voltaram a perseguir Chico Buarque e outros grandes artistas.
Creio que essa fase vai passar, como a ditadura passou, e o Brasil vai retornar ao caminho do processo civilizatorio.