Neste delicioso artigo, o professor, sociólogo e vascaíno Jorge Medeiros, fala sobre o significado da histórica partida, disputada em 1917, que pacificou o Vasco, que convivia até então com uma disputa interna entre os defensores de um clube exclusivamente dedicado ao Remo e o departamento de futebol, criado no ano anterior (1916).
Que esta seja a primeira de muitas colaborações de Jorge Medeiros, também conhecido nas rodas de samba como Jorge Piedade, por ser filho da Piedade, este tradicional bairro da Zona Norte do Rio. Boa leitura.
D.R. Almeida, Editor do Pega na Geral
Há 100 anos o Vasco disputava uma partida histórica
Em meados da década de 1910 o futebol e o remo rivalizavam o coração dos esportistas no Brasil. No Vasco a hegemonia das regatas continuava inabalável apesar da criação do time de futebol em 1916. No ano seguinte o clube subia para a Segunda Divisão e disputaria acirradas partidas nos campos dos mais diversos lugares da cidade. Uma partida marcante foi com um tradicional rival das regatas: o Boqueirão.
Por Jorge Medeiros
O jogo terminaria com a vitória de 3 a 0 e a promoção inédita de uma festa inigualável por toda a cidade com o desfile em carros abertos percorrendo as principais ruas da Capital juntando os jogadores de futebol com os atletas do remo, e mais centenas de torcedores e associados vascaínos.
Aquela peleja não foi mais uma do campeonato, foi o jogo decisivo que uniu para sempre os vascaínos adeptos do futebol com os conservadores atletas e associados vascaínos que desejavam ver o clube atrelado somente ao remo. Naquela época o Club de Regatas Vasco da Gama era a maior potência do remo carioca, sendo o clube mais vencedor até então, com destaque para o tricampeonato em 1912, 13 e 14.
A péssima campanha do time vascaíno em 1916 (somente uma vitória e a estreia desastrosa com a derrota por 10 a 1), era o principal argumento dos defensores do remo. Havia uma pressão muito forte no interior do clube para que o futebol fosse deixado de lado. No entanto, ocorria uma popularidade crescente do futebol por toda a cidade do Rio de Janeiro, com o surgimento de vários clubes, inclusive com a formação de times de futebol em clubes tradicionais de remo, como Flamengo (1912), Icaraí e o próprio Boqueirão.
Entre os remadores havia o preconceito com os jogadores de futebol, considerado “esporte de estudantes ou desocupados”. Para os torcedores vascaínos, o desafio era ainda maior. O cronista Álvaro Nascimento, um dos maiores entusiastas da formação da torcida vascaína nos estádios de futebol, relembrou no Jornal dos Sports dos anos 1960 o clima de animosidade que envolvia as partidas: “as novas gerações vascaínas desconhecem quão grande foi o esforço, a dedicação de homens modestos para entregar-lhes esse Vasco poderoso de nossos dias … um punhado de dedicados vascaínos que, com sol ou chuva, nos campos suburbanos, constituía a ‘policia de choque’ a dar garantia e segurança as nossas representações”.
Outro importante personagem daquela época, o ex-atleta Adão Brandão, autor do primeiro gol do Vasco em 1916, afirmava que essa desconfiança acabou neste jogo, em setembro de 1917, quando o time do Vasco vence o Boqueirão do Passeio[1]. O “ódio (entre remadores e futebolistas vascaínos) era tão grande que uns e outros quase não se falavam. E esse ódio só terminou em 1917, quando o Vasco se reabilitou definitivamente aos olhos dos remadores, vencendo, em partida magnífica, um dos maiores adversários do Vasco em todos os esportes”.
Como faziam sempre, os jogadores saíram desse jogo e voltavam para a sede na rua Santa Luzia. Foi então que “os jogadores de futebol tiveram a maior surpresa de toda a sua vida quando chegaram no clube. A Comissão de Futebol, com Cascadura, Narciso Basto, Fonsequinha e Pascoal Pontes estava desconfiada, mas a alegria dos jogadores era tamanha que eles resolveram entrar no clube dando vivas ao Vasco. Mas nem chegaram a entrar. Os remadores, na porta, de remo em punho, os obrigaram a entrar em carros abertos – e só então eles repararam nos carros – e foram fazer uma passeata pela cidade, irmanados, craques de futebol e remadores”, relembrou Adão em entrevista para o Jornal dos Sports em 1952.
Também começava a se formar um grupo aguerrido para defender os torcedores vascaínos nos jogos em que a torcida adversária quisesse intimidar os nossos adeptos. Era o grupo do “Lasca o Pau”, formado por remadores e lutadores dispostos a defender nosso pavilhão no braço. Como fato inédito, na época, quem chefiava essa Torcida Organizada era Dona Josefa Pereira (primeira Chefe de Torcida do Vasco), irmã de Manuel Pereira, proprietário de uma casa de Tecidos[2]. “Como brigava a Dona Josefa Pereira”, escreveu Álvaro Nascimento em crônica de 1968.
Em 1917 o Vasco não conquistou nenhum título, mas o caminho para a glória conjunta nos dois tradicionais esportes estava aberto. Nos próximos anos não faltariam motivos para a música da Unidos da Tijuca (1998), exaltando o “campeão de terra e mar”, ser o nosso traço definitivo.
[1] O sucesso do time vascaíno de futebol chegava às revistas esportivas. Na semana seguinte ao jogo eram divulgadas as fotos do time na Revista Vida Sportiva. Talvez sejam as primeiras imagens do futebol nas revistas esportivas cariocas.
[2] Relata Álvaro do Nascimento Rodrigues, o Zé de São Januário, em sua coluna Uma Pedrinha na Chuteira do Jornal dos Sports em 21 de Agosto de 1968.