O garoto deve ter seus seis anos. É muito bonitinho. Moreno claro, com aquele cabelo negro, liso e redondo, que revela uma ascendência indígena. Está acompanhado da mãe, magrinha, branca, baixinha, por volta de 35 ou 37 anos, e da avó, uma versão mais velha da mãe. A padaria é daquelas que servem café da manhã em um buffet a quilo. Tomo meu café sozinho e observo a trinca nesta terça de carnaval, em Vila Buarque, centro de São Paulo, por volta das 10hs.
Por Wevergton Brito Lima
A avó fica guardando o lugar na mesa enquanto mãe e filho vão se servir. O garoto se estica todo para pegar com as mãos as guloseimas do buffet. A mãe afasta as mãozinhas, se abaixa (não precisa se abaixar muito, pois o garoto é altinho e a mãe baixinha) e explica ao moleque que basta ele escolher e ela colocará o que ele quiser no prato. Isso foi o suficiente para desencadear uma tempestade de gritos e choro. Toda padaria olhava. Com esforço a mãe pegou o garoto no colo. Ele se debatia tentando alcançar as comidas, e com calma a mãe falava algo em seu ouvido. Ele fechou a mãozinha e deu um soco nas costas da mãe com toda a força disponível. Como ele ainda é fraquinho, felizmente não deve ter doído nada. Assim espero e assim me pareceu uma vez que a mãe deu pouca importância para o soco. E lá veio o segundo soco nas costas maternas. A mãe tinha a paciência de um faquir, pois continuou tentando acalmá-lo, e tomou o terceiro. Aí ela se queimou e deu um tapa de leve na bundinha do garoto. Que revidou com outro soco. Ela deu mais um tapinha, desta vez um tantinho mais forte, e apanhou de novo. Desisti de acompanhar e desviei o olhar. Não sou especialista em pedagogia infantil, mas alguma coisa me pareceu errada naquela cena.
Quando voltei outra vez minha atenção para o trio vi que o garoto estava sentado em frente a um prato repleto de tudo o que o que se possa imaginar. Não ficou quieto muito tempo. Logo estava passeando em volta do buffet. A mãe e a avó permaneceram à mesa conversando tranquilamente. O garoto abriu a parte de baixo do buffet, que tem uma portinhola de madeira daquelas de correr, e passou a mão por dentro e eu torcendo para ele não se queimar. Fechou a porta e ficou na ponta dos pés tentando alcançar as bandejas fumegantes. A mãe e a avó nem aí. Ele não alcançou as bandejas mas conseguiu pegar o apanhador de gelo do baldinho. Lambeu as pontas do apanhador que servem para pegar o gelo, e o colocou educadamente de volta no baldinho, que por um milagre não caiu. Ninguém além de mim parece ter notado a travessura. O garoto já partia para outra expedição quando chega um funcionário da padaria, que suponho ser o gerente, e tenta evitar que ele puxe a colher de uma bandeja. A avó então se levanta e pega o menino pela mão enquanto comenta com o gerente que “devia ser proibido”, só escutei este trecho da frase, não peguei o que ela achava que devia ser proibido. Provavelmente para ela qualquer coisa no universo que ameaçasse seu neto estava fora do lugar devido. Inclusive colher em buffet a quilo.
Declaro, entre parênteses, que minha simpatia irrestrita está com as avós. Desde que o mundo é mundo avó e avô tem como finalidade principal de suas existências paparicar seus netos e assim deve ser.
O garoto, indócil, levanta de novo. Nem mãe nem avó vão atrás ou se importam. Em um piscar de olhos está na ponta do buffet onde ficam os galões com os sucos. Consegue alcançar a torneirinha do suco de laranja e está tentando girá-la. O suco vai cair todo no chão. Acompanho de camarote a catástrofe. O que poderia fazer? Minha mesa não estava tão perto e, mesmo que estivesse, não sei se tomaria alguma atitude. O desastre foi evitado de novo pelo gerente que veio correndo e afastou o moleque. Só então chega a avó. Ela vem, põe o gerente de lado e coloca a mãozinha do garoto de novo na torneirinha desta vez posicionando um copo embaixo, que o menino enche quase até a borda.
Finalmente voltam para mesa e eu para o meu café. O sossego não durou uma volta da colher na xícara. Novos gritos e o garoto está mais uma vez em pé, brandindo uma espada daquele tipo “he man”. O gerente de olho. Mãe e avó terminam suas refeições com calma e decidem ir embora para alívio de toda a padaria. O prato do garoto está quase intocado, igualmente o suco.
Ainda ouço seus gritos na fila do caixa.
Muitos já escreveram sobre o extremo de uma criação familiar baseada na intolerância e no castigo físico ter se transformado em outro extremo: uma educação permissiva demais. Segundo estes críticos isto estaria formando uma geração composta por “rainhas” e “reizinhos” da mamãe e do papai, narcisistas que crescem achando que o mundo lhes será servido em uma bandeja de prata. Eu não sei. Como já disse, não sou especialista nisso. Peço à garçonete da padaria uma água mineral sem gás. Ela pergunta se eu quero gelo. Eu digo que não.
*Wevergton Brito Lima é jornalista