O samba, como manifestação da cultura negra e popular, nasceu transgressor.
Nascido e embalado nos terreiros e nas casas das “tias baianas”, o ritmo foi pouco a pouco ganhando amplitude e popularidade sem deixar de ser porta-voz da picardia e das agruras dos pobres e discriminados.
Um dos elementos centrais do samba era a figura do “malandro” ou do “valente”, que afrontava a polícia.
Isso acontecia pois na época, ainda mais do que hoje em dia, os trabalhadores olhavam a polícia com desconfiança, quando não com franco rancor. Nas primeiras décadas do processo de industrialização no Brasil, o aparelho policial usava de extrema violência para reprimir quaisquer protestos por melhores salários ou condições de vida, além dos abusos costumeiros contra os moradores dos morros.
Em 1916 o cantor Baiano grava, no Rio de Janeiro, a música “Pelo telefone”, considerada pelos especialistas o primeiro samba a ganhar divulgação radiofônica.
Donga fez a música e Mauro de Almeida (conhecido pelo curioso apelido de “Peru dos Pés Frios”) a letra, letra essa que ironizava a corrupta ligação entre o jogo ilegal e os “tiras”:
“O chefe de polícia/ Pelo telefone/ Mandou avisar/ Que na Carioca / Tem uma roleta / Para se jogar (…)”
Assim começava a letra real, cantada pelos sambistas nos bailes e que ganhou a cidade. O que nem todo mundo sabe é que a letra gravada e divulgada pelo rádio foi modificada por temor da reação da polícia e ficou com esta versão no seu início:
“O chefe de folia/ Pelo telefone/ Manda avisar/ Que com alegria/ Não se questione/ Para se brincar (…)”.
A precaução adiantou pouco no sentido de que a letra real foi a que prevaleceu, mas era um procedimento adotado em face de uma realidade muito dura: a repressão ao samba, apesar do seu sucesso já ter rompido às fronteiras das classes proletárias.
Donga relatava – de acordo com Letícia Vidor de Sousa Reis – como era comum festas privadas, realizadas nas residências, serem invadidas pela polícia, com os moradores sendo levados ao distrito pelo crime de cantar e dançar samba. Donga ainda lembrava que policiais menos tolerantes, além de prender os “infratores”, quebravam os instrumentos dos músicos que, por serem quase sempre muito pobres, tinham grande dificuldade em comprar novos pandeiros, violões, etc.
Essa dualidade entre um ritmo que ganhava popularidade cada vez maior e a constante repressão, devia-se ao elitismo intrínseco de uma elite de mentalidade escravocrata, que através da maioria da imprensa a seu serviço influenciava os elementos das camadas médias, vacilantes entre se render à fascinação do samba ou fazer coro ao preconceito com a esperança de um dia, quem sabe, serem aceitos e “subirem socialmente”.
Vejam o que dizia um articulista do Jornal do Commércio de Recife, em 1922, quando os Oito Batutas (que eram nove na formação original: Pixinguinha, Donga, Raul Palmieri, Jacó Palmieri, Nelson Alves, China, José Alves, Luis de Oliveira e J. Thomaz) foram excursionar na França:
“são oito, aliás, nove pardavascos que tocam viola, pandeiro e outros instrumentos rudimentares. E depois ainda nos queixamos quando chega por aqui um maroto estrangeiro que, de volta, se dá à divertida tarefa de contar das serpentes e da pretalhada que viu no Brasil”.
Uma história que simboliza bem o samba como manifestação de resistência cultural, é a do negro Sete Coroas. Nascido no Barroso, uma localidade do Morro da Favela no Rio de Janeiro (atual Morro da Providência), Sete Coroas ganhou este apelido ao assaltar, em 1920, um funeral de rico, levando tudo que podia, inclusive as coroas de flores.
A partir daí e das constantes façanhas ao fugir da polícia, seu nome começa a virar lenda.
O compositor Sinhô (José Barbosa da Silva), que conhecia Sete Coroas, fez, em 1921, um samba em sua homenagem.
É noite escura
Iaiá acende a vela
Sete Coroas
Bam-bam-bam lá da Favela
E a polícia
Já tonteou
Sete Coroas
Meia-dúzia já matou
E o homenzinho
É perigoso
Sete Coroas
Nasceu no Barroso
O sucesso do samba aumenta a popularidade do “malandro”. A imprensa, que contribuiu em muito para a fama de Sete Coroas, noticiando seus feitos com grande destaque, começa a se preocupar.
Em 1922 o jornal carioca Correio da Manhã, em reportagem intitulada “Os nossos morros estão a exigir a atenção dos que se interessam pela saúde pública”, reclama:
“Todos nós lembramos ainda das famosas peripécias do ‘Sete Coroas’ e através dos tempos mais cresce a fama desse bandido no meio favelano. Todos ali querem imitá-lo, desde os meninos até os homens”.
Começa então, aos poucos e de forma sutil, uma articulada campanha para desmoralizar o “Sete Coroas”. Se ele era respeitado por sua fama de valente, a imprensa decidiu que iria pintá-lo como covarde e bandido pé-de-chinelo.
Vejamos alguns exemplos.
Um cronista do Jornal do Brasil publica depoimento de um “ex-valente” que teria sido amigo do Sete Coroas:
“Sete Coroas não era o pior. Foi o que ganhou mais fama. Mas não era o pior. Terríveis eram os seus dois companheiros que morreram: o Camisa e o Benedito”.
A revista Vida Policial, ao se referir a Sete Coroas, revelando um tom de desprezo, diz que ele se chamava “Carlos de qualquer cousa”, a publicação afirma que Sete Coroas teria praticado somente “crimes banalíssimos e a reportagem policial que representa o gosto e a emoção da cidade, deu-lhe a popularidade que outras manifestações ampliaram”.
A mesma revista cita o suposto depoimento de Moleque Simão, “um informante autorizado em cousas do crime, segundo o qual ‘7 coroas não vale nada. Nem sei porque há essa fama; ele foi meu companheiro de cubículo e é até um molequinho à toa…’”.
Sete Coroas foi preso provavelmente entre os anos de 1922 e 1923, o que rendeu uma modinha que circulava nas ruas e cadeias:
“Mandei fazer na macumba / Para comer com você / Uma farofa amarela / Com azeite de dendê… […] Pai José, Pai João / Agora o ‘Sete Coroas’ / Foi morar na detenção…”.
Mesmo preso há alguns, os ataques a Sete Coroas não cessavam.
Em 1925, Vida Policial volta à carga, Sete Coroas não passava de um pobre diabo: “na opinião balizada de todos os seus companheiros (Sete Coroas) é apenas um pobre diabo, estúpido e covarde”, e menciona de novo a opinião do Moleque Simão: “O Sete Coroas (…) é apenas um ‘pobre diabo’” .
Um membro da Academia Brasileira de Letras, Gustavo Barroso, declarou sobre Sete Coroas que “esses criminosos tão célebres não passam de uns ex-homens analfabetos e covardíssimos”.
Em 1926, o Correio da Manhã reproduz um suposto depoimento de um morador do Morro da Favela chamado Justino de Oliveira:
“[Sete Coroas] foi uma lenda criada pela polícia e endossada pelos senhores da imprensa, que o transformaram num herói do crime. É um pobre diabo, que aqui viveu quase desconhecido e que de um dia para outro foi transformado em herói de folhetim. Tímido, covarde mesmo, o preto Sete Coroas se encheu de tal modo de vento que se supôs valente… Incomodava-o a polícia? Pois ele ajustaria contas com ela… E um dia, após um fato qualquer, foi preso, processado e cumpre na Correção a pena que lhe impôs o júri.”
Em 1927 a revista Careta cria uma personagem claramente baseada em Sete Coroas, o Zé Favela, que tinha fama terrível, mas que ao final foi preso “como um idiota, covardemente”.
Gustavo Barroso, já na década de 1930 diz que Sete Coroas era igual a “qualquer negro boçal e infame”.
A tentativa de desconstrução de Sete Coroas era incessante e visava deslegitimar uma referência construída a partir de dois elementos que, juntos, causam calafrio na espinha de qualquer burguês: nasceu no morro e tinha como base a transgressão.
Mas toda essa manipulação teve que enfrentar a cultura popular, o samba de Sinhô, as histórias que corriam de boca em boca nas ruas e favelas contestando a versão oficial.
Quatro décadas depois, em 1971, um dos mais intrépidos e longevos malandros da Lapa carioca (morreu em 1976, aos 76 anos), João Francisco dos Santos, o famoso madame Satã, em entrevista ao Pasquim, dizia sobre Sete Coroas:
“O maior malandro do Rio de Janeiro que eu conheci de 1907 até a época de hoje foi o que me ensinou a ser malandro e me conheceu com 9 anos de idade, foi o falecido Sete Coroas”.
Em outro depoimento Madame Satã ratifica:
“Sete Coroas foi o mestre na fina arte da malandragem: o jogo, a navalha, o papo, a rasteira, por volta de 1928 (aos 28 anos) ele já era um valente muito conhecido e respeitado por seu murro de esquerda”.
Em 1973 Zé Kéti grava a música “Praça 11, berço do samba”, onde canta: “Favela do Camisa Preta, do Sete Coroas/ Cadê o teu samba, Favela…”.
A memória de Sete Coroas sobreviveu intacta entre o povo e ele conquistou um reconhecimento que poucos seres humanos obtiveram: foi elevado à categoria de divindade.
Sete Coroas hoje é um Exu, cujo ponto é cantado da seguinte maneira:
“É noite escura / Na rua acende a vela / Sete Coroas é o bamba da Favela / És malandrinho oi, não precisa trabalhar / Sete Coroas vai pôr tudo em seu lugar”.
Notem a semelhança deste ponto com o samba de Sinhô.
Mais fortes são os poderes do povo
Quando a escravidão acabou em 1888, começaram a ganhar nova força no Brasil teses como a eugenia, que com uma linguagem pseudocientífica tentava justificar o racismo. Era a melancolia das elites pela escravidão recém-abolida. Aliás, não faltou quem, na época, atribuísse à abolição o que se chamava de acirramento da luta entre as raças.
Em outubro de 2015 Alexandre Garcia, jornalista do sistema Globo, declarou que “O país não era racista até criarem as cotas”.
A mentalidade escravocrata, preconceituosa e excludente, de que falamos mais acima, permanece latente nas elites, nas camadas médias, na mídia e nos intelectuais burgueses.
Em pleno carnaval, é sempre bom resgatar histórias que mostram a força da cultura popular, capaz de levar de roldão preconceitos, afirmando a identidade de um povo.
A história de Sete Coroas, por exemplo, pode ser contada de várias maneiras, mas o final é sempre o mesmo: enquanto os “Alexandres Garcias” da vida que tentaram estigmatiza-lo como um covarde foram esquecidos, ele, um negro pobre, morador do Morro da Favela, é imortalizado até hoje nas letras de sambas, na memória popular e cultuado em terreiros por todo o Brasil, pois o samba foi mais forte, e Sete Coroas venceu!
*Wevergton Brito Lima é Jornalista, e torcedor do mesmo time de Noel Rosa, Pixinguinha, Nelson Sargento, Araci de Almeida, Paulinho da Viola, Guilherme de Brito, Martinho da Vila, Aldir Blanc, Gonzaguinha, Teresa Cristina, Xangô da Mangueira, Carlos Cachaça, Clementina de Jesus, Delegado, Dona Ivone Lara, Ismael Silva, Jamelão, Nelson Cavaquinho, Zé Kéti, Preto Jóia, Dicró, e vamos parar por aqui que vascaíno não gosta de humilhar ninguém.
Fontes principais para a construção deste artigo: Modernidade com mandinga: samba e política no Rio de Janeiro da Primeira República, de Letícia Vidor de Sousa Reis (http://www.academiadosamba.com.br/monografias/leticiavidor.pdf) e A construção da memória sobre Sete Coroas, o “criminoso” mais famoso da Primeira República, de Romulo Costa Mattos
(http://www.encontro2012.rj.anpuh.org/resources/anais/15/
1338512062_ARQUIVO_SETECOROAS.pdf).