Era um início de tarde de domingo e eu saia de Vila Valqueire, subúrbio do Rio, onde fui rever alguns amigos. Depois de umas tantas cervejas eu já me sentia levemente embriagado, mas ainda longe de estar irremediavelmente embriagado.
Por D.R. Almeida*, especial para o Vermelho
Resolvi corrigir este pequeno detalhe indo para a Lapa, onde pretendia continuar os esforços etílicos. Um dos amigos, que tem no seu ultramoderno celular um aplicativo para chamar táxis, declarou que usaria este recurso fantástico e que em segundos um táxi se materializaria em minha frente. Fiquei abismado.
Este celular do meu amigo é tão moderno que se recusa a fazer ligações de voz já que ele, celular, considera intimidade demais uma conversa direta entre dois seres humanos. É tudo por e-mail, “WhatsApp” e outras bossas. Em nome da honra da geração pré-internet, ao qual orgulhosamente pertenço, recusei. E foi providencial, pois um táxi despontou na rua em nossa direção e só precisei levantar o braço, operação que ainda realizo com incrível agilidade, e eis que o táxi parou, deixando meu amigo um tanto chateado por não ter feito a mágica com o tal “aplicativo”.
O motorista era também um senhor já de certa idade, magro, de barba branca, que não devia pegar um solzinho desde o último título importante do América em 1982. Pedi que ele me deixasse na Rua Mem de Sá, na Lapa, esquina com a Lavradio. De Vila Valqueire até a Lapa é uma boa distância que poderia ser feita, aliás, em completo silêncio. Mas se o taxista usava a barba branca não era à toa, não senhor. Ele se julgava um apóstolo salvador de almas e, para meu desespero, fui o escolhido para ser o infiel da vez a ser elevado às alturas da graça.
Taxista (caprichando em uma voz apostólica e olhando para mim pelo espelhinho, já que sentei atrás) – Posso lhe perguntar se o senhor crê na palavra de Deus?
Eu – Pode.
Silêncio.
Taxista – Então?
Eu – Então o quê?
Taxista – Eu lhe perguntei se posso lhe perguntar se o senhor crê na palavra de Deus.
Eu – E eu lhe disse que sim.
Taxista – Então o senhor crê na palavra de Deus.
Eu – Eu não disse isso.
Taxista – Não?
Silêncio.
Eu – Não. A única pergunta que o senhor me fez foi se eu permitia que o senhor me fizesse outra pergunta. O senhor não fez a outra pergunta.
Taxista – Não?
Eu – Não, o senhor me perguntou se podia me perguntar. Eu disse que sim e estou esperando a pergunta seguinte, a qual o senhor até já formulou, mas não na condição de uma pergunta diretamente dirigida e eu sou um sujeito um tanto formal nestas coisas.
Taxista (meio confuso, meio desconfiado) – O senhor acredita na palavra de Deus?
Eu – Qual Deus?
Taxista – Como assim?
Eu – Existem milhares de deuses espalhados pelo mundo, de qual Deus você está falando?
Taxista (já um tantinho irritado) – Pra mim só existe um Deus.
Eu – Entendi, você é monoteísta. Então deixa ver se eu adivinho. Seu Deus é
Alá, acertei?
O silêncio dura agora mais um pouco. Ele está se decidindo entre ficar definitivamente irritado e perseverar na mudez, deixando minha pergunta sem resposta como vingança, ou se tenta mais uma vez. Infelizmente, falou mais alto a vocação apostólica.
Taxista – Alá é aquele dos árabes?
Eu – Isso.
Taxista – Por isso que eles vivem jogando bomba nos outros.
Eu – É aí que o senhor se engana. A Arábia Saudita, onde Alá é o Deus oficial, é muito amiga, unha e carne, dos Estados Unidos, este país sim, é que vive jogando bombas nos outros, e o amigo sabe que lá nos Estados Unidos a grande maioria da população segue o Deus cristão.
Silêncio.
Taxista – Este é o meu Deus, Cristo.
Eu – O senhor é cristão? Por que não disse logo?
Taxista (um pouco mais animado) – Hehehe, eu sabia que o senhor estava brincando. O senhor é cristão, não é?
Eu – Não, sou ateu.
Silêncio.
Taxista (de novo um tantinho irritado) – Ateu… Não acredita em Deus. Acredita no que então? No dinheiro?
Eu – No dinheiro não. Quem deve acreditar nisso são os pastores evangélicos que passam metade da pregação falando em arrecadar. Pastor é um bicho muito materialista.
Silêncio.
Taxista (claramente se controlando) – É… E padre, não arrecada não?
Eu – Padre, pastor. É tudo farinha do mesmo saco.
Silêncio. Outra vez o dilema entre ficar calado e seguir tentando. De novo a segunda opção.
Taxista – Não é não tudo farinha do mesmo saco, não. Nós não adoramos imagens.
Eu – Mas acreditam na Bíblia.
Taxista – Claro, mas na Bíblia verdadeira.
Eu – E no Velho Testamento?
Taxista – Lógico, mas é o que eu falo para o senhor, na Bíblia católica muita coisa foi mudada.
Eu – Bom, digamos que você tenha razão. Mas como você explica que Deus tenha orientado Moisés, quando a tribo de Moisés foi atacada por serpentes, a construir uma serpente de bronze e todos que olharam para a serpente ficaram curados das picadas? Olha aí uma imagem sendo intermediária do poder de Deus. E isso também está na bíblia de vocês. Uma vez peguei a bíblia de um pastor, mostrei este trecho e ele ficou sem saber o que dizer.
Taxista – Não existe isso na Bíblia.
Eu – Existe sim. Em Números 21, se não me engano.
Silêncio.
Taxista – O senhor então é ateu mas fica do lado dos católicos?
Eu – Eu não. Não tenho nada com a briga de vocês. Se eu fosse milionário era capaz de comprar armas para católicos e protestantes para que vocês resolvam suas diferenças na bala.
Silêncio.
Taxista (adotando um tom resignado, como quem diz, “este não tem jeito”) – Acho que o senhor ia jogar dinheiro fora. Ninguém vai matar ninguém só porquê um é católico e o outro é protestante.
Eu – Fico aliviado em ouvir isso. Milhões já morreram na história por brigas entre católicos e protestantes. Vou até ligar para minha avó para tranquilizá-la. Ela tem 93 anos, e passou a vida me contando como os hereges tinham um plano de matar o Papa para colocar em seu lugar um huguenote, coisa em que ela acredita até hoje. Mas vou dizer a ela que conversei com o senhor e que vocês desistiram da ideia.
O silêncio agora durou mais tempo. Quando ele voltou a falar, tinha finalmente desistido do papel de apóstolo. Era só uma pessoa comum, curiosa sobre outra pessoa comum, mas que, aos olhos dele, era um tanto esquisita.
Taxista – Então o amigo é ateu. Mas você não acredita em nada?
Eu – Acredito. Acredito na humanidade. Acredito em seres humanos como o senhor, que em pleno domingo trabalha duro para sustentar sua família, aturando um cliente rabugento como eu. Acredito que a imensa maioria das pessoas é como o senhor, trabalhadora, íntegra, e muitos têm uma fé religiosa que eu respeito, mas não compartilho. Meu único problema com algumas visões religiosas é justamente a intolerância em relação às opções alheias.
Depois de outro curto silêncio pensativo, o taxista voltou a falar.
Taxista – Eu entendo o que senhor quer dizer. Mas olha moço, eu não tive estudo, mas tenho 63 anos. Já vi tanta maldade, tanta coisa que não devia acontecer e acontece, tanta gente ruim, que eu acho que precisa mais fé para acreditar no ser humano do que para acreditar em Deus.
Foi minha vez de ficar em silêncio. De repente me dei conta de que nesta conversa com o motorista eu estava chato e desnecessariamente provocativo. Ao fim e ao cabo, o apóstolo intolerante fui eu. Realmente, pensei, o capitalismo gera uma sociedade tão egoísta, tão perversa, que a solidariedade é a exceção e a injustiça é a regra. Depois de toda uma vida de trabalho e exploração, se o proletário não desperta para a luta por uma alternativa concreta e viável, pouco lhe resta além de procurar o consolo do pensamento místico e de uma vida depois da morte que o compense dos sofrimentos terrenos. Como bem definiu Marx: “a religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma”.
Finalmente, quando chegamos ao destino, fui até a janela do motorista para saudá-lo, como quem pede desculpas pelo mau-humor. Estendemos as mãos e ele me disse sem nenhum resquício de provocação: “Sei que o senhor não acredita, mas fique com Deus”, e eu respondi, com a mesma sinceridade e até um pouco comovido, pois apertava a mão de um trabalhador, de uma pessoa honesta: “Obrigado, irmão”.
* D.R. Almeida é escritor e jornalista