O futebol tem os seus chavões, em geral tão antigos como o próprio jogo. “Quem não faz leva”, “clássico é clássico”, etc. Mas um deles surgiu na última década e é usado sempre que um grande clube atravessa uma crise: “o clube tem que ser administrado como empresa, por empresários!”.
Por Roberto Monteiro*
Com a aprovação da lei que permite aos clubes se transformarem em Sociedades Anônimas de Futebol (SAF) este chavão voltou à moda e os tradicionais Cruzeiro Esporte Clube e Botafogo Futebol e Regatas venderam seus departamentos de futebol a empresários. O modelo de Clube Empresa/SAF escolhido pelos dois clubes (existem vários previstos na lei) foi o da venda de 90% das ações da nova empresa para um particular.
Segundo a nova lei, a partir da constituição da SAF, Cruzeiro EC e Botafogo FR ficam proibidos de montar equipes de futebol profissionais e surge o Cruzeiro SA (ou Cruzeiro SAF) e o Botafogo SA (ou Botafogo SAF), portanto, em termos de futebol, Cruzeiro Esporte Clube e Botafogo Futebol e Regatas deixam de existir, embora as novas empresas possam continuar usando nome, cores e símbolos dos antigos clubes, até que, por algum motivo, os donos resolvam os modificar ou a SAF seja extinta, já que, pela lei, o proprietário pode mudar o nome, as cores e mesmo a sede regional do time ou pedir a falência da SAF.
Mas este modelo tem muitos problemas objetivos e subjetivos. Vamos a eles:
1º – Estudos abalizados provam que a gestão puramente empresarial está longe de representar qualquer garantia de sucesso para o time. O livro “O Mito do Clube Empresa”, do advogado Luciano Motta, que fez um detalhado estudo das experiências de Clube Empresa na Europa, revela que boa parte dos clubes que se transformam em empresas retorna, por diversos motivos, ao formato de clube.
No Brasil temos exemplos similares. Vejam o caso do Figueirense que em 2017 entregou seu departamento de futebol para ser administrado por uma empresa. Em 2019, com salários atrasados e greve de jogadores, o dono da empresa simplesmente notificou a CBF que estava desistindo de disputar a série B. Enfrentando a revolta da torcida, o Conselho Deliberativo amador do Figueirense rescindiu o contrato com a empresa para que o clube continuasse na competição, reversão impossível de acontecer no tipo de SAF adotado por Cruzeiro e Botafogo, cujos sócios e torcedores agora, caso estejam insatisfeitos, irão reclamar com o Rei e isso nos remete ao segundo problema.
2º – Onde existe a figura do “dono” impera uma monarquia absolutista e hereditária, como prova a declaração de Kim Lim, filha de Peter Lim, proprietário do espanhol Valencia (comprou 70% do clube). Em 2020 Kim Lim declarou, em meio à cobrança dos valencianos sobre o pífio desempenho do time: “o clube é nosso e podemos fazer o que quisermos e ninguém pode dizer nada“, escreveu a herdeira nas redes sociais.
Aliás, uma das cenas mais constrangedoras do esporte nos últimos tempos foi assistir, em janeiro deste ano, uma torcida organizada do Cruzeiro, a mesma que exigiu a venda do futebol do clube ao Ronaldo Fenômeno, revoltada, cobrando explicação sobre a saída do goleiro Fábio: “Ronaldo, gordão, vem dar satisfação!”, gritavam. Estão gritando, e esperando satisfação, até agora.
3º – O modelo Clube Empresa/SAF vem para estratificar posições, consolidando um projeto antigo de espanholização do futebol brasileiro, restringindo o número de clubes realmente competitivos a no máximo 5 ou 6. O próprio caso da Espanha é exemplar. A maioria dos times espanhóis é de empresários. Agora, adivinhem os dois que não são? Adivinharam? Justamente Barcelona e Real Madri, que juntos ganharam 16 dos últimos 20 títulos nacionais e são propriedades dos sócios, preservando há muitos anos uma hegemonia estável, enquanto os clubes empresas seguem como coadjuvantes.
4º – A SAF atenta contra a alma do torcedor brasileiro. A relação do torcedor com seu clube, no Brasil, envolve um vínculo peculiar que começa ainda na infância e se perpetua por toda a vida.
O torcedor se identifica com a história, as tradições e as cores do clube que, muitas vezes, para ele, torcedor, tem um simbologia mais profunda do que a de um simples time de futebol.
O Clube passa a representar, muitas vezes, seu pai ou seu avô, sua família unida em uma tarde ensolarada de domingo, uma vitória inesquecível que marcou sua infância, e assim o time passa a ser parte integrante do seu universo pessoal e íntimo e ele encara o clube como uma coisa sua, eterna, que pode até sofrer grandes derrotas, mas que será sempre imperecível.
Uma relação deste tipo, tão bonita e delicada, não deveria ser entregue a pessoas que só vejam os clubes como fontes de lucro.
Se pessoas deste tipo estivessem no comando do Corinthians Paulista, quando este time passou 23 anos sem ganhar um mísero título, o clube teria resistido? E o Fluminense, que parecia sem perspectivas quando caiu para a terceirona? Com certeza, o frio homem de negócios do Clube Empresa/SAF não suportaria os prejuízos e encerraria o “negócio”.
Por fim, profissionalismo não é inimigo de uma gestão que tenha no comando dirigentes movidos pela paixão, bastando a estes dirigentes agir de forma honesta, colocando sempre em primeiro lugar os interesses da instituição e sabendo discernir o momento em que devem agir como gestores do momento em que devem deixar fluir seus sentimentos de torcedor.
Como prova o caso do meu Vasco, muitos Clubes enfrentam, de fato, problemas que são oriundos de graves erros e vícios de gestão, como corrupção, nepotismo, incompetência, golpes institucionais, falta de democracia, etc., mas a SAF é uma falsa solução para estes problemas verdadeiros e atende a diversos interesses, nenhum deles os do sócio ou do torcedor, que com o modelo da SAF só vai poder, como as torcidas do Cruzeiro e do Valencia, ficar pateticamente cobrando “do gordão” ou da filha do dono uma satisfação que nunca virá.
* Roberto Monteiro é advogado, ex-vereador da cidade do Rio de Janeiro, Benemérito do Club de Regatas Vasco da Gama