Em abril de 2020 escrevi, no início desta maldita pandemia, uma crônica lamentando a morte do gênio Aldir Blanc por covid-19. Agora morre o grande Nelson Sargento e mais uma vez a garganta aperta, os olhos marejam e você se revolta com estes tristes tempos, de elegias diárias e pranto permanente.
Nelson Sargento foi uma presença marcante em minha vida e na vida de milhões de brasileiros. No meu caso lembro, entre outras coisas, das já longínquas noites da Lapa do início do século XXI, quando toda roda de samba, seja no finado bar “Coisa da Antiga” (também conhecido como Empório 100), seja no Carioca da Gema, tinha, obrigatoriamente, um hino: “Agoniza Mas Não Morre”.
Nestes ambientes que reuniam os cultuadores do chamado “samba de raiz”, os versos de “Agoniza Mas Não Morre” eram, para nós – crentes desta fé pagã – como uma oração que denunciava a tentativa de profanar o sagrado:
“Samba, inocente pé-no-chão / A fidalguia do salão / Te abraçou, te envolveu / Mudaram toda a sua estrutura / Te impuseram outra cultura / E você nem percebeu”
Mas ao mesmo tempo, a letra reafirmava a nossa fé no samba e em sua capacidade de ressurgir sempre. Afinal, o samba, este “negro forte, destemido”,
“Agoniza mas não morre / Alguém sempre te socorre / Antes do suspiro derradeiro”.
E era um tal de cantar o “Agoniza mas não morre” várias vezes na mesma noite, que não havia demônio que não fosse exorcizado. Já quase raiando o dia, o samba de raiz estava salvo, por Nelson Sargento, um dos seus principais apóstolos, e por nós, bêbados, porém fiéis irredutíveis.
Aliás, impossível ser sambista mais raiz do que Nelson Sargento foi. Bendito “fundamentalismo” feito de poesia, talento e tolerância.
Criado no morro do Salgueiro, mudou para a Mangueira aos 12 anos e foi parceiro dos grandes nomes da genial geração de Cartola, Nelson Cavaquinho e por aí vai. Todo carioca nascia fã do Nelson Sargento, muitas vezes sem ter noção disto. Seu samba enredo (dele, de Jamelão e de Alfredo Português), Cântico à Natureza, era praticamente um hino nas ruas dos subúrbios do Rio. Quem, com mais de 50 anos, não se emociona ao ouvir os acordes inicias e a letra que dizia:
“Oh! primavera adorada / Inspiradora de amores / Oh! primavera idolatrada / Sublime estação das flores”
Verso e melodia andam de braços dados e caminham em passos harmônicos nas músicas de Sargento, onde, é claro, não faltam os ingredientes de picardia, como é comum nas obras de todo bom sambista. Lembro que meu pai gostava de citar os seguintes versos, da canção “Falso Amor Sincero”:
“O nosso amor é tão bonito / Ela finge que me ama / E eu finjo que acredito”
E como se não bastasse ser um poeta de mão cheia, Nelson Sargento era um homem de ideias avançadas, em mais de um sentido. Vejam se, em meio a tanta hipocrisia dos “cidadãos de bem” que povoam nossa política e nosso dia a dia, não continua atual a essência da letra do samba “Falso Moralista”:
“Você condena o que a moçada anda fazendo / e não aceita o teatro de revista / arte moderna pra você não vale nada / e até vedete você diz não ser artista (…) Segunda-feira chega na repartição / pede dispensa para ir ao oculista / e vai curar sua ressaca simplesmente / Você não passa de um falso moralista”
E a letra de “O Samba do Operário” (feita com Cartola e Alfredo Português)?
“Abafa-se a voz do oprimido / Com a dor e o gemido / Não se pode desabafar / Trabalho feito por minha mão / Só encontrei exploração / Em todo lugar”
Nelson Sargento, além de tudo, era vascaíno. O Vasco, vivendo uma grave crise esportiva e política (atualmente uma diretoria golpista e ilegítima assumiu o Clube, para variar com apoio da Globo) ainda perde dois torcedores apaixonados em pouco mais de um ano: Aldir Blanc e Nelson Sargento.
Aliás, Sargento compôs uma linda música em homenagem a sua paixão: “Casaca, Casaca”, onde faz referência a um orgulho de todo vascaíno, o fato de o Vasco ter sido o clube que derrotou o racismo reinante no futebol brasileiro:
“São muitos anos de glórias / Enriquecendo a história, do esporte bretão / Vasco da Gama, baniu o preconceito / Em nome do direito, dando razão a razão”.
A memória de Nelson Sargento – “negro forte, destemido”, artista de múltiplos talentos (compositor, cantor, artista plástico, escritor), patrimônio da cultura nacional – jamais perecerá, pois por mais que o tempo passe, e surja o risco de sermos colonizados culturalmente de forma definitiva, sempre haverá um boêmio cantando na madrugada, em defesa do samba, que “alguém sempre te socorre / antes do suspiro derradeiro”.
Belíssimo texto e justíssima homenagem ao grande e inesquecível Nelson Sargento!
O “agoniza mas não morre” é, para além do samba, o hino de nossos sombrios tempos.